sábado, 23 de maio de 2015

DECISÃO GARANTE SEGURANÇA JURÍDICA NA ORLA


Liminar lavrada pelo juiz Hélio do Valle Pereira, favorável ao restaurante Oliveira, na Lagoa da Conceição, é forte: não só em fundamentos jurídicos como também em argumentos históricos e socio-antropológicos, estes relembrando a urbanização ancestral (mas grosseira) do nosso combalido e desassistido litoral - intensamente ocupado mas órfão de estruturas de apoio náutico em quantidade e qualidade bastantes. 

De maneira sutil, lá pelo meio da decisão, o magistrado dá tapa de luva no MPF, ao considerar que, levada a regra moderna a ferro e fogo, sem razoabilidade, "se deveriam retirar também os prédios que estão nas imediações dos mangues, que hoje ficam protegidos por áreas aterradas". 

Importante: fica claro que "cada caso é um caso", o que significa dizer que a decisão, embora sirva de precedente em sua fundamentação geral, não protege a miríade de distintas hipóteses,  erguidas em diferentes datas às margens da Lagoa da Conceição ou mesmo sobre elas - por vezes avançando no espelho d'água. 

Ao fim e ao cabo, sobrará espaço para subjetividade e arbítrio, conforme o magistrado da vez e a capacidade probatória do desesperado postulante que, diga-se, não escapará de pesadas despesas com advogados, custas e peritos (e, por fim, calmantes) para provar, anos depois, o seu alegado direito - tenha ou não razão!

Tudo isto, enquanto em outra frente de batalha, não menos onerosa e irritante, estará a se defender da SPU avançando bolivarianamente sobre a propriedade privada do pacato cidadão impondo-lhe imaginária linha demarcatória de terrenos de marinha.

Muito trabalho pela frente! 

Íntegra da decisão:

Mandado nº: 023.2015/022489-8 

Situação: Distribuído em 09/04/2015 
Local: Capital / Central de Mandados do Foro Capital

Vistos etc. 

Nesta demanda se quer liminar para impedir demolição de imóvel que margeia a Lagoa da Conceição. A conduta da municipalidade, que faz ameaça documentada de desalojamento da autora, vem de decisão da Justiça Federal ao menos assim se vendo dos documentos anexados ao processo. Lá houve deliberação, mediante provocação da Procuradoria da República, no sentido de impor à Prefeitura de Florianópolis o exercício do poder de polícia, de sorte a afastar as edificações ofensivas ao meio ambiente. Fez-se, no caso da autora, laudo administrativo e se comunicou a ilicitude da obra, dando-se ciência da perspectiva de desfazimento do que está lá. Ao que se nota, então, este processo tem relação com a imensa polêmica divulgada pela imprensa a propósito de deliberação que teria imposto a mera demolição de infinitas acessões na Lagoa da Conceição. Como se vê, não era bem assim, e seria aberrante que se atingissem terceiros alheios ao processo. O máximo que poderia ser feito era como adequadamente faz o Município um levantamento técnico individualizado, dando-se a cada possuidor o direito de defesa. Só depois, à vista de cada caso, se poderia decidir a respeito da melhor medida a ser adotada. É um truísmo, mas deve ser repetido: a coisa julgada atinge quem faz parte da relação processual, quem ingressou com a ação ou pôde se defender. É o que está no art. 472 do Código de Processo Civil. Desse modo, para a autora, nada existe judicialmente que imponha um necessário prejuízo aos seus interesses patrimoniais. Firmada a premissa, tinha a tentação de dizer que seria inesperada uma iniciativa voltada a destruir edificações que estão há décadas e décadas no mesmo ponto e sem que haja nenhum indicativo de que, em certo momento, houvesse alguma sorte de polêmica a respeito da possibilidade de ter sido levantada aquela edificação. Só que essa situação, digo com frustração, não é inesperada. Há um sentimento, que se é bem distante de ser geral, não é raro, no sentido de impor uma extemporânea política de tolerância zero. Usam-se valores sedimentados apenas mais recentemente para corrigir erros pretéritos se é que se pode, no caso, falar propriamente de erros. Com pretensões censórias, quer-se dizer que o que os florianopolitanos poderiam ter feito há décadas atrás. Dito de maneira bem direta: hoje choca realmente que haja edificações margeando a Lagoa da Conceição. Constrange que se impeça, em termos concretos, até mesmo a plena visualização daquelas águas, que se permita um amplo acesso das pessoas àqueles locais. É lamentável que se chegue a ter lojas vendendo as mais corriqueiras coisas (que poderiam ser ofertadas em qualquer outro ponto) em detrimento daquilo que poderia ser um símbolo do patrimônio natural de Florianópolis. Só que não vejo como solução, muito menos vejo como justo, que se observe apenas um dos lados desse problema. Se atualmente existe essa acentuada sensibilidade, não é razoável que se procurem corrigir distorções passadas por meio do ataque a fatos consolidados há décadas. O direito é dinâmico, as compreensões evoluem, mas não pode existir um compromisso de desfazer o consolidado a partir de visão de hoje. As cidades raramente nascem de forma planejada, ou se desenvolveram dessa forma previamente calculada. Florianópolis surgiu voltada para o mar e se pode estender, depois, que também se voltou para a Lagoa. Comemoram-se há poucos dias 289 anos, mas o dado é simplista. A ocupação humana aqui tem milhares de anos. Os europeus frequentavam a Ilha desde o início do século XVI. Aqui estiveram Sebastião Caboto, Hans Staden, Cabeza de Vaca. Era o Porto dos Patos. Custou-se até a compreender que as Baías não eram um estuário, mas a separação do continente. Houve uma invasão espanhola. O fundador da vila do Desterro foi assassinado por piratas. Milhares de açorianos pobres foram enviados para colonizar este local. (A respeito, têm-se os ótimos livros de João Carlos Mosimann, Porto dos Patos - A Fantástica e Verdadeira História da Ilha de Santa Catarina na Era dos Descobrimentos, e Carlos Humberto P. Corrêa, História de Florianópolis.) E se construía naturalmente perto daquilo que trouxesse mais comodidade. Rio, mar, lagoa, pouco importava. A terra era de quem chegasse primeiro ou tivesse mais poder. Não havia melindres ambientais. Isso não é uma característica dos ilhéus. É uma prática mundial. Li por estes tempos uma reportagem muito representativa na Folha de São Paulo, e destaco esta passagem (que reencontrei, é claro, por pesquisa na internet): Debaixo das principais avenidas de São Paulo, passam rios. Sob a 23 de Maio, corre o Itororó. Na 9 de Julho,flui o Saracura. Na avenida dos Bandeirantes, esconde-se o córrego da Traição. E, na avenida Pacaembu, claro,o Pacaembu. Na capital paulista, existem mais de 300 cursos de água encobertos. () "Água não falta, o que falta é a percepção dela", afirma o urbanista José Bueno, que criou a iniciativa Rios e Ruas ao lado do geógrafo Luiz Campos Jr. () "Fui apresentado ao Luiz e perguntei: Você diz que São Paulo tem um monte de rios, a gente pode experimentar isso? Aí ele disse uma frase que me fisgou: Não existe nenhum lugar da cidade em que você esteja a mais de 200 metros de um curso d'água. Isso é brutal", recorda o urbanista. (http://www1.folha.uol.com.br/revista/saopaulo/2014/11/23/1551264-aqui-passa-um-rio.shtml). Essas construções mais próximas (nem se fale então daquelas sobre) os rios são todas indevidas à luz da atual legislação e especialmente ante os valores que reinam atualmente. Haveria sentido em derrubá-las? O direito ambiental é feito por gente e deve ser evocado para valorizar pessoas. Derrubar aquilo que foi erguido sem nenhuma suspeita de ilicitude há décadas não traz proveito social. Traz insegurança, prejudica prerrogativas individuais, agride até mesmo o patrimônio cultural, que é representado pela forma com a cidade foi paulatinamente se espraiando. Como disse, causa-me pena de haja uma avenida praticamente sobre as dunas, que construções escondam a visão da Lagoa. Não estimo como seja viável, porém, promover uma derrubada dessas construções ou obras longevas, algo que se impregnou na cidade. Fosse assim, os tratores do Município não poderiam mais parar. Começar-se-ia possivelmente derrubando este Fórum (que está próximo de curso d'água e só não está mais perto do mar por causa de aterros) e prosseguindo sem limites morros, vizinhança de córregos ocultos, quase tudo não poderia mais subsistir. A seu tempo se chegaria à longa avenida Beira-Mar Norte e se deveriam retirar também os prédios que estão nas imediações dos mangues, que hoje ficam protegidos por áreas aterradas. Ratifico, de conseguinte, esta longa passagem doutrinária: O ordenamento jurídico vigente oferece os requisitos para a concretização das áreas urbanas consolidadas. Todavia, nem o Código Florestal nem as Resoluções do CONAMA enfrentam questão crucial, isto é, como recuperar áreas de preservação permanente urbanas com ocupação consolidada. Tome-se como exemplo, as avenidas marginais aos rios na grandes cidades ou os bairros situados nas regiões íngremes. À luz do Código Florestal, são de preservação permanente as margens desses rios, o topo de morros caso da Avenida Paulista, em São Paulo e as encosta de morros com inclinação igual ou superior a 45º. Seriam , porém, rematado despropósito pretender a demolição da infra-estrutura urbana existente nessas áreas. Não é necessário invocar a regra do direito adquirido para solucionar tais hipóteses, mesmo porque não existe direito adquirido de degradar o meio ambiente. Aplicando-se, porém, o princípio da razoabilidade, quando a reversão do status original de APPs exigir a realização de obras de tal parte que acarretem significativo impacto ambiental e de vizinhança (arts. 36 a 38 do Estatuto da Cidade: demolições, retirada de camada asfáltica, problemas de tráfego, poluição sonora e visual, dentre outros) e, ainda, naquelas em que o custo da recuperação seja despropositado, a mesma não deverá der exigida. Este é o quadro normalmente verificado em áreas urbanas de grande densidade populacional e de inexistência de instabilidade ambiental provocada pela intervenção antrópica no ambiente. Acórdão do Superior Tribunal de Justiça que julgou o Recurso Especial n. 499.188-SE, cuidando de hipótese de construção de estrada de rodagem em área de preservação permanente (dunas) não precedida de estudo de impacto ambiental tratou de hipótese assemelhada. Referido recurso especial havia sido interposto pela União Federal contra acórdão proferido em sede de apelação pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região que concluíra pela aplicação do princípio do poluidor-pagador em face da 'impossibilidade fática e jurídica do desfazimento da obra, cujas conseqüências ambientais e sociais seriam bem piores que as de sua realização'." (...) Tecidas tais considerações, pode-se concluir que (...) c) A recuperação de áreas de preservação permanente urbanas com ocupação consolidada somente há de ser exigida nas hipóteses em que os benefícios ambientais trazidos por sua revitalização sejam superiores ao impacto ambiental e de vizinhança decorrente da realização da obra e seus custos sejam compatíveis com o benefício trazido para a coletividade." (Guilherme José Purvim de Figueiredo, Código Florestal: Aspectos Polêmicos, in Revista de Direitos Difusos 33/172-174) Sou obrigado, é claro, a ponderar, ainda que seja bem evidente, que isso não afasta muitíssimo pelo contrário a nítida possibilidade de se encontrarem construções imerecidas. Prédios mais atuais e sem licença, obras embargadas e que prosseguiram sem temor, acréscimos irregulares, edificações que lançam dejetos nas águas e assim indefinidamente. Só que no caso concreto, o próprio Município diz que a construção tem registro desde 1970 (fls. 21). A autora traz papéis que apontam até para ocupação precedente quase uma década. Seria um despropósito que se admitisse a demolição sem que se avaliem esses aspectos todos. Assim, defiro a liminar, sustando a eficácia de qualquer iniciativa do Município que afete a posse da autora sem nova decisão judicial. Cite-se.

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